No Rock in Rio, curadoria boa é a do departamento comercial

Na pesquisa de satisfação com os consumidores do festival, música não é um dos quesitos em destaque

Marco Antonio Barbosa
7 min readSep 25, 2024

A edição 2024 Rock in Rio, encerrada no domingo (22/09), só teve acertos em seu line-up. Dos headliners dos palcos principais às atrações menores, espalhadas pelos 385 mil m² da Cidade do Rock, a curadoria agradou a todos. Nomes consagrados de ponta a ponta, que ofereceram experiências incríveis para o público. E notou-se a preocupação do evento em oferecer espetáculos diferenciados, com direito a escolhas ousadas e fora da caixa. Um êxito completo.

Refiro-me, claro, à curadoria do departamento comercial do Rock in Rio.

Contando com os ‘media partners’, o Rock in Rio carregou este ano 63 marcas, ou 0,41 marca para cada show realizado.

Line-up de responsa, reunindo um verdadeiro hit parade das marcas mais conhecidas do país. Os patrocínios “Master” e “Institucional” seriam os equivalentes ao fechamento dos palcos Mundo e Sunset, respectivamente. Os outros patrocinadores seriam os artistas de abertura nos palcos grandes. Apoiadores representariam os nomes menos bombados, relegados aos palcos Supernova, Global Village e Espaço Favela. E os parceiros, aquela galera espalhada pelo New Dance Order, Rota 85, Feira Hype e outros points. Como headliner principal, ao Itaú coube a honra máxima de estampar seu logo na roda-gigante do evento — o monumento que resume a repaginação do Rock in Rio.

De um festival de rock (que nunca foi só de rock) ao atual status de laboratório avançado de ações de marketing e engajamento, o RiR percorreu um longo caminho nos últimos 40 anos. Mas teria sido tão longo assim?

É risível ver, em 2024, discussões ingênuas nas plataformas de mídias sociais sobre as escolhas artísticas da Rock World S.A., a empresa que produz o Rock in Rio (e o The Town, e o Lollapalooza Brasil). Desde sua concepção, o RiR foi pensado em função de cifras, propaganda, exposição, investimentos. O evento nasceu para promover uma marca de cerveja; sua segunda edição só foi realizada por causa de uma marca de refrigerante.

Quem critica o “comercialismo” que tem marcado a fase atual do festival deveria pesquisar um pouco as reportagens sobre a produção da primeira edição. Muito se falava em dólares, estímulo à economia, ingressos vendidos, infraestrutura, litros de cerveja a serem consumidos e patrocinadores. Sobre as atrações escaladas, quase nada.

Jornal do Brasil, 21/08/1984.

“O Rock in Rio não é um projeto empresarial (e sim um projeto) de um cidadão preocupado e insatisfeito. Quando a cidade vai bem, eu vou bem, e uma reação econômica promove emprego, atrai dinheiro, gera outras atividades e, no fundo, garante o direito de meus filhos voltarem vivos para casa.” — Roberto Medina, em entrevista ao Jornal do Brasil, 7/10/1984. (Achei o final da declaração meio preocupante.)

Atrair dinheiro sempre foi a função primordial do RiR, cuja marca buscou um patamar diferenciado a partir da edição de 2001. É quando surge o slogan “Por um mundo melhor” e o evento passa a consolidar a ideia de que ir ao Rock in Rio era uma experiência imperdível por si só, independentemente da seleção de artistas da vez. Quando se atinge esse patamar (e inegável que o RiR já o atingiu), a curadoria musical vira apenas uma nota de rodapé.

Um festival que dependa de pessoas interessadas apenas na música está fadado ao fracasso (comercial). Mas um evento voltado a promover “experiências únicas e diferenciadas” sempre vai atrair um público mais amplo. Especialmente hoje, em plena era da digitalização/plataformização da opinião pública, do convívio e da interação social, na qual “experiência” é sinônimo de “consumo” e de “compartilhamento nas redes”.

Eu escrevi, há três anos, uma análise da evolução do preço do ingresso do Rock In Rio entre 1985 e 2022. O texto mostra que o festival começou como um evento realmente acessível à população de menor renda, e que os preços vieram escalando de forma constante nas edições seguintes. Parece claro que o RiR veio mudando seu público-alvo, de forma a atrair faixas demográficas de maior poder aquisitivo. Para justificar o aumento no preço do ingresso, são concebidas a cada edição mais “experiências” paralelas aos shows, todas elas devidamente atreladas a marcas patrocinadoras.

O Rock in Rio é, hoje, antes de mais nada uma plataforma para promoção de si mesmo, de sua marca. Em segundo lugar, dos patrocinadores. Em terceiro, um espaço para os espectadores (famosos e anônimos) promoverem a si mesmos. Em um distante quarto lugar, é um evento de música. Não por acaso, o release-resumão enviado pela assessoria de imprensa ao fim do festival começa mencionando uma pesquisa de satisfação dos consumidores, quantidades de comida e bebida vendidas, toneladas de materiais reciclados, horas de experiências paralelas, e só lá embaixo entram informações sobre os shows.

(O release com a pesquisa de satisfação dos “clientes” do Rock in Rio mencionava quesitos como “espaço físico”, “limpeza”, “espetáculo de fogos”, “ingressos digitais” e “banheiros”. Nenhuma palavra sobre os shows.)

A expectativa do público acerca dos eventos de música mudou drasticamente nos últimos. Esse movimento é retroalimentado pelas mudanças (estéticas, comerciais, mercadológicas) protagonizadas pelos artistas e pelos próprios eventos. Para o público roqueiro do Brasil de 1985, trazer o Queen para tocar ao vivo era como bancar a segunda vinda de Cristo: um verdadeiro milagre, motivo de comoção e regozijo. Ninguém se importava se a “Cidade do Rock” não passava de um descampado na putaqueopariu de Jacarepaguá, ou se não tinha cerveja importada de R$ 19/lata pra beber.

Em 2024, as pessoas encaram um festival como um investimento, uma alocação de (valioso) tempo e uma oportunidade de gerar conteúdo para suas marcas pessoais nas redes. A música é apenas um dos componentes da “experiência” que o público quer ter em retorno pelo caro preço dos ingressos. É por isso que fãs de divas pop, boybands e quejandos não se importam de ver seus ídolos fazendo playback no palco; eles preferem ver um espetáculo perfeito, sem falhas, sem risco de desafinação ou erros de execução. Essas coisas atrapalham a “experiência”. Valei-me, São Walter Benjamin!

(Lembrei de uma postagem vista no Twitter, no ano passado. Alguém dizia não ver problema em ir ao The Town apenas para sentar na roda-gigante, pois, pelo preço cobrado pelo ingresso, o evento tinha a obrigação de oferecer atrações além da música. Arrematava justificando: “show eu assisto na TV mesmo”. Quando você convence esse tipo de pessoa a ir a seu suposto festival de música, você está feito na vida.)

Eu estive presente a seis dos sete dias da edição 2024 e testemunhei como isso se dá na prática. Cercada por logomarcas coloridas por todos os lados, a paisagem da Cidade do Rock é um convite à saturação sensorial, meio Blade Runner e meio Disneylândia. Por “cortesia” do TikTok, paparazzi de aluguel tiravam fotos dos frequentadores, transformando-os de meros mortais em influencers (por alguns minutos). Era difícil caminhar sem esbarrar, em todos os cantos, com gente posando para selfies ou tirando fotos dos amigos — quase todos repetindo as mesmas poses, dedinhos em chifre satânico, língua para fora, e, invariavelmente, alguma marca ao fundo.

Mais complicado era trafegar por entre as filas. O Rock in Rio 2024 contou com mais de 40 espaços para ativações, todos eles com longas filas desde o momento de abertura dos portões. Nem sempre era fácil explicar a atração pelas marcas. KitKat, Johnnie Walker e Chilli Beans, ok. Suvinil (com um estande gigante para os lados do palco Sunset), Braskem e Cif? Menos.

Fazendo referência a um outro texto meu, publicado no Scream & Yell, quem vai ao Rock in Rio não gosta de música. Gosta de quermesse: de hambúrguer superfaturado, de roda gigante, de passar horas numa fila (de costas para o palco) por um brinde. E gosta, acima de tudo, de postar vídeos e fotos sobre essas experiências. Nesse sentido, o Rock in Rio vem se tornando uma quermesse cada vez melhor, com um line-up (de patrocinadores) cada vez mais completo e satisfatório. Música? A gente ouve em casa.

Obrigado por me aturar em mais uma plataforma. Curtiu? Aperta o botão laranja aí embaixo para compartilhar este post. Não curtiu? Manda um comentário com ponderações.

P.S. — O que eu fui fazer no Rock in Rio? Fui trabalhar, ué. A convite do Splash UOL, participei da cobertura NINJA feita durante a maratona. Confiram nos links abaixo minhas resenhas para os shows de:

Kevin o Chris

Veigh & Kayblack

21 Savage

Amaro Freitas

James

Kingfish

Imagine Dragons

Journey

Deep Purple

Bixiga 70

Cynthia Luz

IZA

Carminho

Luedji Luna

Luisa Sonza

Ney Matogrosso

Akon

P.S.II: retomando o assunto do post da semana passada, Space Karen (AKA Elon Musk) segue empenhado em estragar o que sobrou do X Twitter. Ele pretende mexer na funcionalidade da opção de bloqueio de usuários, permitindo que perfis bloqueados ainda possam ver os tuítes de quem os bloqueou (mas não interagir com eles). O block na plataforma já andava meio esvaziado, de todo modo. Hoje, a medida apenas esconde os posts na página do perfil do bloqueado, mas não impede que se veja o que ele posta (se alguém que você segue retuitar o bloqueado, você vai ver o tuíte).

Devemos lembrar que Musk prometera, ano passado, que iria acabar de vez com a opção de bloquear usuários, naturalmente em nome da ~liberdade de expressão~. O block sempre foi burlável — bastava usar uma conta paralela para ver as postagens de quem te bloqueou. A mudança nas regras só facilita a vida dos trolls, que agora não precisarão mais ter outro perfil para ver (e printar, e compartilhar) posts de gente que os bloqueou. Mas, hey!, liberdade de expressão! Uh-hu!

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Marco Antonio Barbosa

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)