O ‘homo plataformus’ chega em breve. E vem de Uber

As plataformas parecem invencíveis, mas elas podem ser hackeadas. Basta sacrificar tudo que temos na vida!

Marco Antonio Barbosa
4 min readOct 11, 2024

Plataformização. Vocês vão ver esse termo com frequência por aqui. Mas o que significa?

Doravante, entendemos por plataformização a penetração das plataformas nas infraestruturas, processos econômicos e estamentos governamentais, em diferentes setores econômicos e esferas da vida. E, na tradição dos estudos culturais, compreendemos esse processo como a reorganização, em torno das plataformas, das práticas culturais e das imaginações.”Poell, T. & Nieborg, D. & van Dijck, J. (2019). Platformisation. Internet Policy Review, 8(4). https://doi.org/10.14763/2019.4.1425

Trocando em miúdos, plataformização (s.f.) é o que acontece quando entregamos as rédeas da sociedade às plataformas. Esse processo tem vários possíveis pontos de início — tecnologia, empregos, finanças, comunicação, produção cultural — e um único ponto final: a interferência das plataformas de big tech em todos os aspectos da atividade humana. E quando me refiro a todos, não é hipérbole. São todos, mesmo.

Não dá para dizer quando e como chegaremos a esse endgame da plataformização. Mas temos, aqui mesmo no nosso Brasilzão, um exemplo perfeito de como será a realidade de um mundo 100% plataformizado. Basta perguntar a Munir Orra.

Peraí, perguntar a quem?!

Munir Orra é o cara que garante ter faturado mais de R$ 600 mil em 2022 e 2023 como motorista de Uber em São Paulo. Para efeito de comparação: o mesmo UOL que revelou a história de Orra calculou a renda média mensal de um condutor de aplicativo na mesma cidade: R$ 6,5 mil brutos, R$ 2,5 mil líquidos descontadas as despesas. Não há mágica no ajumentado faturamento de Orra. Ele simplesmente levou a plataformização do trabalho — quer dizer, da vida — às ultimíssimas consequências.

Não me surpreende que ele tenha essa aparência.

Como a reportagem do UOL explica, Munir Orra (adorei esse nome!) consegue faturar cerca de 400% a mais que o motorista padrão seguindo uma “rotina radical”. Entre suas “estratégias”, destacam-se uma jornada de 18 horas/dia conectado no aplicativo do Uber (o que o obriga a dormir no carro) e a determinação de só aceitar corridas da categoria Black (e em áreas afluentes de São Paulo). Na reportagem, não é mencionado o lucro líquido extraído dessa “rotina”, descontando-se gastos com combustível, manutenção, estacionamento etc.

Munir Orra é o exemplo perfeito do homo plataformus, o ser humano que se adaptou a uma vida 100% plataformizada. Era inevitável chegarmos a esse ponto, especialmente no campo da empregabilidade. O trabalho mediado por plataformas é precarizado em todos os sentidos e os trabalhadores têm pouquíssimo poder de barganha. A exploração é exercida sem limites, cinicamente apresentada como “capitalismo”. Aos explorados, resta se conformar, recaindo numa espécie de Síndrome de Estocolmo que os leva a agradecer pela “oportunidade” de serem explorados.

A alternativa é seguir o exemplo de Munir Orra, que “hackeou” os limites do Uber e “destravou” uma forma de lucrar mais, potencializando sua própria “resiliência”. O homo plataformus redobra a malandragem da plataforma e a devolve à própria. No processo, o cara apenas teve de abdicar da própria vida e acabar com todos os limites entre trabalho e tempo livre. Mas, hey!, 600 e tantos mil em dois anos! (Menos as despesas.)

Naturalmente, Munir não pretende dirigir 18 horas por dia para sempre. Ele disse ao UOL que está “juntando dinheiro para empreender”. Quando li isso, pensei na hora: nasce um influencer. Bingo. O radical do Uber já acumula mais de 4 mil seguidores em seu perfil (verificado) no Instagram, no qual se apresenta como “Criador(a) de conteúdo digital”.

Seu endgame — o endgame de todo homo plataformus — é seguir avançando na plataformização, desta vez no patamar de explorador, não mais de explorado. Pelos feedbacks que o agora ~empreendedor~ vem recebendo no Insta, não vai faltar gente agradecendo por mais essa oportunidade.

Quando constatei lá em cima que era inevitável chegarmos a este ponto, me referia à galopante dominação das plataformas em um número cada vez maior de aspectos de nossas vidas. Plataformização é quando deixamos de escutar música para escutar playlists. É quando permitimos que bilionários cripto-fascistas desafiar nossas leis em nome da ~liberdade de expressão~. É quando passamos a escolher políticos por sua capacidade de viralização, não por sua capacidade de realização. É quando vemos empresas completamente desreguladas e envolvidas em negócios para lá de nebulosos capturando a atenção (e a renda) de uma enorme fatia da população.

Com seu alcance transnacional, seus recursos financeiros e tecnológicos aparentemente inesgotáveis e sua predisposição para descumprir leis que considerem inconvenientes, as plataformas assumiram, em poucas décadas, um ar de ameaçadora inescapabilidade. Elas já bagunçaram, de forma irremediável, o mercado de trabalho; o jornalismo, a publicidade, o marketing; a política, em níveis nacionais e globais; a produção e a distribuição de produtos culturais; o comércio; etc.,etc. E, acima de tudo, bagunçaram os relacionamentos humanos, fragmentados e distorcidos pela lógica (?) das mídias sociais.

O homo plataformus é filho direto de todas essas mudanças. Ele corrobora a ideia da “sobrevivência do mais apto” da qual falavam Darwin e Spencer. Se a plataformização é inevitável, os mais plataformizados triunfarão. Ainda que, neste caso, “adaptação” e “evolução” definitivamente não sejam sinônimos.

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Marco Antonio Barbosa

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)