O PROBLEMA NÃO É DA BETERRABA. É SEU.

Marco Antonio Barbosa
5 min readOct 21, 2016

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Imagine que você é vegetariano(a). [Se for vegetariano(a) de verdade, pode pular essa parte.] Você chega em casa morrendo de fome, abre a geladeira e só encontra um pote com beterrabas… e uma panela cheia de linguiças. Nenhuma das duas opções parece viável. Apesar de sua dieta estritamente vegetariana, você abomina, não suporta, detesta a cor, o cheiro e a textura da beterraba. E a linguiça… bem, não precisa nem explicar, né? É linguiça. Só que a fome é muita. As linguiças parecem bem apetitosas, brilhantes, cobertas de cebola e salsinha picada. Mas é linguiça, né? E as beterrabas estão lá, abomináveis como sempre foram. Mas pelo menos é vegetal, né? As opções são bem claras. Você come a beterraba, mesmo detestando-a? Você come a linguiça, sabendo que isso contraria sua filosofia alimentar? Você vai pra cama com fome [e revoltado(a)]?

Enquanto decide, começa a ruminar em voz alta imprecações sobre a beterraba. “Beterraba não dá. É rosa, e eu detesto essa cor. É quase redonda, mas não chega a ser redonda de verdade. Assim não dá. Tem gosto de terra — que nojo! Não, não, beterraba não rola.” E a linguiça tá lá, do ladinho, te olhando, te seduzindo. Já passou da hora de ir pra cama, o estômago ronca, você já empunha o garfo… Vai comer o que, afinal?

Este segundo turno da eleição para a prefeitura do Rio tá parecido com o dilema do nosso(a) vegetariano(a) hipotético(a). Temos um candidato, o líder nas pesquisas, apetitoso como uma linguiça acebolada. A gente sabe como as linguiças são feitas, né? Ainda assim, a galera não deixa de comê-las, mesmo sabendo que elas representam o que há de mais retrógrado na política brasileira. (Peraí, ainda estamos falando de comida?) O outro, que está atrás e provavelmente não vai ganhar, é de esquerda. E não é qualquer esquerda: é aquela esquerda com fama de feroz e intransigente, que ainda assusta as senhorinhas de Copacabana e os senhorões da Taquara. Mas, assim como a beterraba, o candidato de esquerda é o que é. Uma beterraba não engana ninguém. Você pode detestar o gosto, mas sua origem e procedência são inquestionáveis.

Todo mundo gosta de se achar vegetariano, desculpe, progressista. Entretanto, na decisão entre a beterraba e a linguiça, desculpem, entre Freixo e Crivella, muita gente por aí anda regateando de forma similar ao vegetariano(a) indeciso(a) de nossa parábola. Os conservadores esclarecidos (A.K.A. “isentões”) não suportam a ideia de votar em Freixo. Como votar num partido que tem a letra S em sua sigla — e na cor vermelha, ainda por cima?! Entretanto, a ideia de votar em Crivella também os repugna. Seria chancelar o atraso, o populismo, a ingerência da religião, o alinhamento a Garotinho, a Malafaia, a Rodrigo Bethelem, a Jerominho. Entretanto, se a opção é votar no Freixo, subitamente Crivella parece um pouco menos repugnante…

Uma outra turma, as viúvas do comissariado (A.K.A. “petistas”), está ainda mais dilacerada. Votar em Crivella é inconcebível (ainda que o senador tenha integrado o governo Dilma, mas disso todo mundo parece ter esquecido). Qual seria o problema de votar em Freixo, então? O problema é que o PT não abre mão de ser visto como a única alternativa de esquerda para o país. Não admite que existam outras possibilidades, outros discursos, outros diálogos. Para eles, apesar de toda a desgraceira que se abateu sobre a legenda da estrelinha nos últimos anos, o caminho do PT é o único justo e certo, e não pode ser questionado. Para piorar, o PSOL é uma defecção do PT, e todos sabemos como o partido trata seus dissidentes. Seria uma beterraba difícil de deglutir.

Então, tal e qual o vegetariano(a) relutante, isentões e petistas têm uma difícil decisão à sua frente: ou votam em Freixo (contrariados), ou votam em Crivella (mais contrariados ainda), ou escolhem nenhum dos dois. E, incapazes (ao menos em público) de defenderem a segunda ou a terceira opções, muxoxam, resmungam e tergiversam, limitando-se a apontar os problemas da primeira opção. “Político de DCE.” “Só fala para a zona sul.” “Não se comunica com o povo.” “Vai criar um banco municipal.” “Só sabe falar em golpe.” “Não fala o suficiente no golpe.” “É amigo do Jean Wyllis.” “Vai aumentar a máquina pública.” “É de um partido desagregador.” “Foi o PSOL que puxou as manifestações de 2013.” “É a esquerda (de) que a direita gosta.” “Não está atacando o Crivella o suficiente.”

A questão é que esses não são problemas, assim como a cor arroxeada e o gosto de terra não são “problemas” da beterraba. São características indeléveis. A beterraba e o Freixo são o que são. Ninguém é obrigado a gostar de qualquer um dos dois. Há quem goste, há quem não goste — e há quem faça força pra não gostar. Você pode encher a beterraba de condimentos e temperos para que ela se pareça menos com uma beterraba. No caso da política, os condimentos e temperos são as alianças, as concessões, o fisiologismo. Uma maionese que descaracteriza o sabor da beterraba, não demora a azedar e provoca uma baita indigestão.

As pessoas lamentam o fato de Freixo não ser o candidato ideal para elas, mas isso é um problema das pessoas, não do Freixo. Ele é o que é. Se serve pra você, você vai e vota nele. Se não serve, você vota no outro ou anula. Mas sem fazer drama. Vi gente praticamente culpando o Freixo por se ver “obrigada” a votar em branco ou no Crivella, como se suspirasse “Ah, se o Freixo fosse diferente…” Relacionando incessantemente seus supostos defeitos, como se repetissem para si mesmos: “Respira fundo, o Crivella vai ganhar, vai ser uma merda, mas a culpa não é minha, a culpa é do Freixo, a culpa é do Freixo…” A culpa não é do Freixo.

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Marco Antonio Barbosa

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)