Scandurra ao vivo no RJ: se entregando mais do que nunca

Marco Antonio Barbosa
3 min readOct 9, 2024

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Edgard: só sorrisos na noite do show no Manouche (foto: Fábio Fernandes — La Cumbuca)

Memórias boas são como amigos invisíveis. Não as vemos, mas elas estão lá, para o que der e vier; recorremos a elas e obtemos conforto, alegria, orgulho, apoio. Como fazemos com nossos amigos. No dia 26 de maio de 1990 — um sábado — , ganhei um punhado inesquecível desses companheiros intangíveis. Foi o dia em que assisti ao show de lançamento do primeiro álbum solo de Edgard Scandurra no Rio de Janeiro. Um álbum batizado como… Amigos Invisíveis.

Reencontrei os amigos que fiz naquela noite — digo, as memórias que guardei desde aquela noite — num outro sábado carioca, mais de três décadas depois. O primeiro LP de Edgard completou em 2024 35 anos de lançamento, e ele tem feito shows solo para festejar a marca histórica. O público do Rio de Janeiro teve a chance de assistir o espetáculo em 5 de outubro, no clube Manouche. Foi uma noite de triunfo para o maior guitarrista da geração BRock. Scandurra reacendeu o brilho do repertório de Amigos Invisíveis; reconfirmou sua habilidade e feeling como bandleader; e retribuiu a recepção calorosa do público com sorrisos gigantes, permanentes.

O roteiro é idêntico ao do disco, ao menos na ordem das canções. Mas as versões ao vivo de 2024 são mais fluidas, com mais espaço para solos e improvisos. É assim em “Amor em B.D.”, “Minha Ainda É a Mesma” e “Abraços e Brigas”, compactas em estúdio e expandidas no palco. E também é assim nas passagens mais viajantes: o cover de “Our Love Was” (The Who), as instrumentais “1978” e “Bem-vindo Daniel”, a apoteose de “Vou Me Entregar Como Nunca”. Mesmo tendo, como sempre, a figura de Pete Townshend como referência principal, Edgard hoje soa mais hendrixiano que nunca, caprichando nos solos velozes e distorcidos que transformam blues em psicodelia.

O disco é curto, mesmo com as esticadas instrumentais. Então tem que ter bis, né. E tem Hendrix (“Little Wing”) no bis, e também… Link Wray (uma poderosa e surpreendente versão de “Rumble”). E também tem Ira!, três vezes (“Você Não Sabe Quem Eu Sou”, “Coração” e “Flores em Você”). Uma colher de chá bem-vinda. Ninguém pediu “Núcleo Base” ou “Envelheço na Cidade”. (Mas se rolasse uma “Faça umas Compras”, ninguém iria reclamar também.)

É notável perceber a diferença entre o Edgard solo e o Edgard do Ira! no palco. Com a banda-mãe, o guitarrista precisa se atentar às tabelinhas com Nasi, aos hits inevitáveis, às expectativas de um público muito mais heterogêneo. Revisitando Amigos Invisíveis, ele se liberta disso tudo, tocando antes de mais nada para si, com o amparo dos muito visíveis Taciana Barros (teclados) e Daniel (baixo) — sim, a mãe do Daniel e o próprio Daniel, que era um bebê quando o pai compôs “Bem-vindo Daniel” para ele, e hoje segura as quatro cordas nas apresentações solo de Edgard.

Comercialmente falando, Amigos Invisíveis é um disco irreproduzível no atual contexto da música brasileira. Edgard sabe disso, por isso faz questão de lembrar, no palco, da liberdade e da confiança que recebeu da gravadora WEA em 1989. Imaginar hoje um selo multinacional lançando um disco solo de um guitarrista que fez questão de tocar todos os instrumentos, com covers nada óbvios e números sem vocais… Felizmente, as músicas estão aí, sempre estarão.

Não posso dizer que reencontrei todos os amigos, quer dizer, rodas as memórias de 1990. O tempo passa e minha mente não é mais a mesma, depois de tantos anos e tantos outros shows. Lembro de ter ficado impressionadíssimo no show do Circo com a bandaça, que incluía dois bateristas (Biba Meira do DeFalla e Claudio Fontes), Fabio Golfetti (Violeta de Outono) na guitarra e Taciana (Gang 90) nos teclados. Lembro que Edgard mandou um rápido cover de “You Really Got Me” no bis. E lembro de ter ido ao camarim encher o saco dos caras; até consegui levar uma baqueta da Biba, que guardei por décadas até desaparecer em alguma mudança.

Mas quando a memória falha, outros amigos intervêm. No caso, o YouTube.

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Marco Antonio Barbosa

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)